Sobre Constituições que ameaçam<br>e federalizações que avançam à revelia

Sérgio Ribeiro

Tendo participado num debate sobre «o futuro da Europa», promovido pelas Câmaras Municipais do Cartaxo e de Santarém, da intervenção de abertura ao debate retiro o que talvez seja oportuno trazer para «consumo interno» e não só.

Estando a decorrer a CIG – Conferência Inter-Governamental –, que tem como documento de trabalho o projecto – sublinho projecto – de «Constituição» para a União Europeia elaborado por uma chamada convenção, é o futuro da União Europeia, e o nosso!, que se revela de uma actualidade absolutamente exclusivista.
Pode começar-se pela ultrapassagem de mandato da chamada «convenção» que elaborou esse projecto de «Constituição» que há quem queira apresentar como bem mais que um projecto, e sobre ele lançar projectos outros de referendo, de datas para referendo (que até anticonstitucionais são), de perguntas para referendo.
É que o mandato da convenção era tão-só – e muito era – o de estudar e propor à CIG mudanças no tratado que desde Roma, em 1957, tem vindo a ser modificado. Mas essa convenção, presidida por Giscard D’Estaing, e formada por representantes de várias coisas mas não, por exemplo, de partidos políticos – logo, de cidadãos – que não fossem os da maioria parlamentar, essa “convenção” resolveu ultrapassar o seu mandato e apresentar o tal projecto de «Constituição».
Atitude voluntarista, legítima interpretação extensiva do mandato, louvável excesso de zelo? Talvez um pouco de tudo isso mas, decerto, proposta nada inocente ou neutra.
Não é de agora que determinados interesses pretendem abrir caminho – e caminho aberto está – para que o processo de integração europeia saia da senda das negociações intergovernamentais e entre nas autoestradas federalistas em que as portagens das constituições têm altas taxas para uns e vias verdes para outros.
Antes, porém, de avançar por esta temática estimo necessário algo de introdutório dizer sobre a palavra/conceito Constituição a partir, evidentemente, da minha experiência e reflexão.
Confrontei, seriamente, a palavra nos há muito idos anos 50 do século passado, no velho 7º ano do liceu, em que havia uma cadeira de Organização Política e Administrativa da Nação (OPAN) onde essas matérias se estudavam. Quem então estudava recebia uma informação quase reverencial sobre a Constituição Portuguesa, era a lei geral e fundamental da Nação a que todas as leis deviam manter obediência, e fora adoptada em 1933, na institucionalização do Estado Novo.
Para mais, sublinhavam-nos que essa lei fundamental fora adoptada após um esmagador referendo nacional, em que a população portuguesa esmagadoramente plebiscitara esse chamado Estado Novo. Só quem já dispunha de outra, bem perigosa de divulgar, informação, ou a ela mais tarde acedeu, sabia que esse referendo nada tivera de democrático, fora formalmente um embuste pois teve o pormenor de as abstenções contarem como votos a favor do proposto pelo governo fascista, numa despudorada batota.
Mas o respeito pela palavra/conceito Constituição, lei fundamental, não se perdia e até se reforçou quando dessa Constituição se fez bandeira, ou argumento, para a luta antifascista, ao exigir-se o cumprimento de artigos que poderiam levar ao respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como o artigo 8.º decretava inconsequentemente.
As revisões alterando o quadro constitucional de nenhum modo se banalizaram, o que reforçava a sua respeitabilidade, e é quase contemporânea com essa frequência do 7.º ano dos liceus, uma importantíssima revisão da Constituição, em que, para responder aos ventos da História, se introduziu no corpo da texto, como Parte VI – das províncias ultramarinas, um Acto Colonial de 1930, que era, desde 1933, um anexo à Constituição.
Mas sobre isto devo passar adiante, pois daria para largos desenvolvimentos, até porque houve posições dignas de estudo e reflexão como a de Marcelo Caetano, então relator do parecer da Câmara Corporativa que foi desfavorável à abertura de um caminho para a inserção das colónias no ordenamento constitucional português cujo desfecho o próprio Marcelo Caetano viria a confrontar como Presidente do Conselho.
Pois esse desfecho tem a ver com o 25 de Abril de 1974, e nele de novo a palavra/conceito Constituição tem toda a relevância. Comprometeu-se o MFA a que, no prazo de um ano, haveria eleições para uma Assembleia Constituinte e, caso raro, um ano depois havia eleições democráticas para a formação de uma Assembleia Constituinte e, também raro caso, em menos de um ano de intensos trabalhos parlamentares promulgava-se, a 2 de Abril de 1976, uma Constituição da República Portuguesa.

A escalada neoliberal

Todo o percurso desde então, as sucessivas revisões dando quadro jurídico à escalada neoliberal e ao que chamamos contra-revolução, a banalização do texto fundamental como algo que se modifica segundo conjunturas e necessidades do poder executivo, por via da actuação de um bloco central alargado à direita mais extrema, o gato-sapato que se faz da afirmação constitucional de direitos, como os direitos à educação e à saúde que se tratam no âmbito e na óptica das mercadorias, dos mercados, das empresas, essa banalização não pode apagar a relevância que as constituições têm em qualquer ordenamento jurídico de Estado de direito.
Tanto assim que, quando se pretende passar a uma fase superior da «construção europeia» é de Constituição que se fala, a modos de um rabo que denuncia o gato mal escondido.
É que há, ou têm-se definido, duas vias de «construção europeia».
Uma, é a que tem sido prosseguida na prática de passo-a-passo, pé-ante-pé, de negociação permanente entre os governos, com passagem por conferências (as CIG) para que as mudanças mais substanciais sejam acordadas ao mais alto nível dos executivos, depois presentes aos parlamentos ou a referendos para que os Estados-membros, nas suas plenitudes institucionais, ratifiquem o que intergovernamentalmente tenha sido acordado.
Outra, seria a de haver decisões a nível supranacional, depois de instalada, ou tendo progressivamente vindo a ganhar peso, a regra da maioria, e a que todos os países, Estados-membros, se submeteriam, deixando de haver tratados resultantes de acordos intergovernamentais mas um documento de cariz constitucional, de um Estado Federado (ou de uma Federação de Estados) que prevaleceria sobre constituições e soberanias nacionais.
Esta via, que aponta ao federalismo (tenha ele a escatologia de se formar uma Federação de Estados ou a de se criar um Estado Federado), e que se tem insinuado desde sempre na via da intergovernamentalidade, conseguindo nela incrustar-se e quase tornar-se como sua natural sequência de aprofundamento. Aliás, tão longe já se foi que se pode dizer que a União Económica e Monetária, com a sua moeda única e com o seu Banco Central Europeu, já é uma parcela federal numa União Europeia resultado de intergovernamentalidade e ainda intergovernamental.
Poderá por isso dizer-se que a tentativa de federalização da «construção europeia», isto é, do processo que nos trouxe até este estádio (como Bela Balassa definia integração), esteve sempre como processo paralelo, espreitando e ganhando posições.
Justificar-se-ão referências a um relatório Werner, que no final dos anos 60 propunha a criação de uma moeda e de um banco central únicos até final dos anos 70, assim concretizando um chamado aprofundamento que teve de ser preterido pelo alargamento, ao relatório Tindemans, no final dos anos 70, clarificando a perspectiva de um necessário núcleo super-integrado, formado pelos países em condições, capazes e querendo avançar pelo aprofundamento do processo de integração, e uma periferia, formada pelos países já das «comunidades» ou em vias de a ela se ligarem, sem condições, incapazes ou não querendo participar no núcleo super-integrado, e muitas outras referências seriam possíveis a que, hoje se junta esta «convenção» que terá, para a história que de datas e nomes é feita, a designação Valery Giscard D’Estaing.
Este passo ou, para se ser rigoroso, esta proposta de passo ou salto apresenta-se, ou desculpa-se, também, com a urgência de se aprofundar face ao alargamento que está aí à porta, com a entrada de 10 novos Estados-membros a juntar aos actuais 15.
No entanto, se, indiscutivelmente, esses Estados são, a avançar-se com o projecto de «constitucionalização» da União Europeia, não ficariam tão membros como se candidataram e de candidatos se tornaram Estados-membros, pois não poderiam participar nesse salto, e juntar-se-iam aos que, estando já na União Europeia, também não dariam o salto por razões e/ou impossibilidades e/ou quereres vários.
Mas a urgência vem daí mesmo. Da maior dificuldade em dar o passo/salto quando forem 25 os membros e não os actuais 15. Há que fazer, hoje, o que mais difícil será fazer amanhã e, assim, quem vier já encontra o que a sua presença e participação iria dificultar. O que, na verdade, não se pode considerar grande respeito por boas normas ou regras de acolhimento e hospitalidade.
Além disso, nem precisos são os novos para que difícil seja a adopção, ou tão-só a discussão, do projecto que, com algum abuso, a convenção propôs à CIG em curso. Bastará lembrar que, da mistura de vias para a «construção europeia», que haverá quem considere sequencial, resultou que, a 15, a União Europeia já confronta uma contradição, até etimológica, de ser uma união que, no que respeita à economia e ao monetário, reduz os 15 a 12, e da dúzia não consegue passar apesar dos esforços que esbarram em referendos, como os dinamarquês e sueco, e em opiniões públicas e resistências resultantes de ligações atlânticas, como as do Reino Unido.

O assassinato

da intergovernamentalidade


Acresce que, importante é dizê-lo, a interpretação sequencial representaria a defesa de que a intergovernamentalidade e os tratados atingiriam, ou até já teriam atingido, os seus limites, o seu prazo de validade e, após a progressiva substituição da unanimidade – um Estado-membro, um voto – pela regra da maioria com ponderações que privilegiam Estados por via das dimensões e demografias, com a magna questão de se saber quantos serão os grandes, se a Espanha e a Polónia grandes são ou apenas quase-grandes, com os pequenos e médios Estados a contarem cada vez menos, passar-se-ia para a fase seguinte que é a da «federalização» e sua «constitucionalização».
A grande questão é que, na actual fase, essa passagem só é possível por via da unanimidade e, por isso, do que se poderia chamar a morte, ou assassinato, pelos governos, da intergovernamentalidade. Ou, para ser ainda mais sugestivo, pelo suicídio da intergovernamentalidade.
Daí a enorme importância deste momento, pois pode tornar-se – pode tornar-se ! – a última oportunidade dos governos defenderem soberanias nacionais que eles têm vindo a desvalorizar no processo que têm protagonizado.
Todo este processo, aparece como um processo político, da super-estrutura, e é necessário procurar qual a dinâmica económica e social, ou as dinâmicas, que lhe está, ou estão, na raiz, na origem. Em última instância, porque a relação é dialéctica...
Nesta abordagem, sem ser redutor mas procurando resumir, diria que esta deriva constitucionalizante representa a «constitucionalização do neoliberalismo», a «constitucionalização do mercado» em tempo de transnacionalidade, a que se dá o nome de globalização.
São os grupos e empresas transnacionais, que bem mais são que multinacionais e cujos interesses e dinâmicas estão na origem das decisões políticas supranacionais que se pretendem impor às estruturas e funcionamentos políticos nacionais, são os grupos e empresas transnacionais, o poder económico, que definem e/ou marcam o ritmo dessas dinâmicas económicas e sociais, com os seus reflexos políticos, nacionais e supranacionais.
Como partido que se identifica e afirma, para dentro e para fora, como partido da classe operária e dos trabalhadores, com os seus intrínsecos princípios, valores, formas de organização, a sua democraticidade que pede meças a qualquer outra forma de organização, a nossa posição é, porque tem de ser!, coerente com esta interpretação e, quer pela dimensão económica e social, em que valoriza o confronto entre classes e as actuais e actualizadas formas de exploração da força de trabalho, quer pela dimensão política, entende dever preservar a estrutura democrática baseada na não ultrapassada macro-estrutura Estado-nação, as soberanias e independências nacionais que se reconhecem cada vez mais interdependentes, tem de estar frontalmente contra esta pretensa constitucionalização e exigir que o seu governo, e os outros governos, informem devidamente as populações e não escamoteiem o suicídio que estarão – poderão estar! – em vias de perpetrar. Suicídio que teria de ter, depois, a passagem de certidão de óbito pelos parlamentos nacionais, onde estão os representantes dos cidadãos, ou por referendos, sendo então os cidadãos chamados a, directamente, a assinarem. Pondo-se, neste caso, com grande acuidade, quando e a que pergunta, ou a que perguntas, teriam os cidadãos de responder.

Não abdicamos

Antes de terminar, será oportuno lembrar que não estamos isolados na denúncia e recusa do que está a ser capciosamente colocado como opção e, também, como informação à opinião pública.
Meramente a título de exemplo, embora com um desfasamento temporal que terá o seu significado, é muito oportuno lembrar que, em Maio de 2000, o actual primeiro ministro de Portugal, Durão Barroso, em entrevista ao jornal Público, afirmava-se contra o que explicitava como a «Federação Europeia plenamente parlamentarizada», contra «o directório dos países centrais», contra o «governo europeu», contra «a eleição directa de um Presidente europeu», contra «o predomínio dos países fundadores», contra «a institucionalização de uma vanguarda», contra «a divisão político institucional em dois ou mais grupos de Estados nessa União», até porque as propostas federalistas seriam passos «na estratégia de consolidar uma diferenciação de jure e de estatuto político entre os Estados-membros da União Europeia», o que, então, não considerava aceitável.
Contra tudo isto também estamos, e embora não nos sentindo particularmente confortados pela companhia não a ignoramos, esperando que não seja ignorada por quem afirmou tais posições, e fundamos a nossa posição numa coerência de que não abdicamos ao sabor de pragmatismos de curto prazo e vistas curtas, ou de quaisquer outros oportunismos.


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